quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Sina


Não gosta dos dias em que sai de casa assim, espírito de caça nos gestos e no olhar, carência pontiaguda no coração. Mas sempre dá certo. Pode não ser nada importante que valha uma lembrança, mas é sempre um alivio pro corpo, alguma distração para ajudar a passar o tempo interminável dos sozinhos.

Foram horas no banho, tentando mandar pelo ralo tudo o que a afligia. Na frente do espelho, não havia maquiagem suficiente que trouxesse o viço, cor ou textura de outros tempos. Nem mesmo os olhos verdes, antes lagos serenos tão elogiados agora se destacavam mais, escondidos pelas pálpebras pesadas de álcool e noites de mágoa virando na cama. Para se garantir, ela não vacilou. Pegou o velho jeans surrado e colante, aquela blusinha generosa e chamativa, e para arrematar a sandália mais matadora, saltos finos e altíssimos.

Desde que o Agenor a abandonou há dois anos para viver com uma zinha qualquer, a funcionária pública dedicada, a dona de casa exemplar que vivia para agradar o marido e cuidar da casa e da família precisou rever sua vida, valores e medidas. Descrente de afetos sinceros, desde então mudou o guarda roupa, a cor do cabelo e a atitude, e se contenta com o fugaz até que surja alguém que a veja de verdade.

Sai tropeçando no salto e na auto estima até o bar mais próximo com a esperança de sempre. Sente um calafrio quando vê, no bar em frente, seu ex-marido bebendo com aquele seu grupo de amigos arruaceiros. Mas não dá bola para isso. Algo lhe diz que esta noite pode ser bem diferente

(*) Você pode ver um outro lado dessa história no conto "Viúva", de Petê Rissatti no blog Vermelho Carne. Clique aqui

A escultura acima, “Abandom” é de Camille Claudel, que sabia tudo sobre abandono

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Olhos rasgados


Ela não podia acreditar no que via, quando saía do transe e jogava o olhar para o sul de seu corpo. Aquele par de olhos quando fechados formavam uma perfeita linha reta, um risco em diagonal ascendente cravado num rosto anguloso. Esses olhos em traço ficavam especialmente lindos quando ele literalmente encaixava a face naquele vão, exato ponto onde suas pernas nasciam. Como num ritual, ela gostava sempre de deixar a luz a meia nessa hora só para realçar o brilho daquela pele bronzeada recobrindo músculos talhados pela natação e o esporte tocando a sua.

Perfeição. Essa a palavra. Êxtase, a sensação. Adoração, o sentimento. Um vivia para o outro em tal harmonia, que muitos duvidavam. Mesmo depois de tanto tempo juntos, ela não cansava de olhá-lo em todos os momentos, sobretudo naquele em que a fazia sentir-se mais querida, e então se ajeitava na cama, no sofá, tapete, rede, onde fosse, só para melhorar o ângulo e poder curtir um dos inúmeros prazeres de estar ao lado daquele homem que trouxe do Oriente mais que seus genes, uma magia.

Ele era tão perfeito e poderoso, que aquela mulher sempre dava um sorrisinho enigmático quando ouvia piadas sobre as dimensões dos japoneses. Se eles soubessem...


Óleo do expressionista Egon Schiele, que nasceu na Áustria em 1890, morreu aos 28 anos e incomodou muita gente.