O domingo que encerrava o feriadão amanheceu nublado, chuvoso, um convite para ficar em casa curtindo preguiça. No entanto a primavera paulistana fervilhava de eventos culturais. Mas quem optou por visitar a Balada Literária organizada pelo escritor Marcelino Freire certamente acertou.
Era o dia da homenagem à escritora Lygia Fagundes Teles, bela e classuda aos 86 anos, tarde quente de temperatura e afetos. Sua presença ampliou e elevou a média etária do público, atraindo tanto seus fãs de décadas como jovens sedentos em vê-la de perto. Perguntada sobre o futuro da sua obra, ela afirmou que isso é questão dos herdeiros, no seu caso, as duas netas que cuidarão do seu legado quando for a hora.
A questão tirou por instantes o brilho daquele olhar. Para onde terá ido no breve momento? Será que Lygia se referia aos dois maridos falecidos (Gofredo da Silva Teles e João Paulo Salles Gomes)? Haveria revolta por eles terem-se ido antes dela? De qual dos companheiros sentiría mais saudade? Mas logo explicou que se referia aos colegas que deixaram este plano ao dizer com palavras acinzentadas “é um mar morto de escritores”. Melancolia que corrigiu imediatamente ao afirmar, matreira, “mas vocês fiquem tranqüilos, viu? Apesar de estar com as pernas fracas (referindo-se à fratura recente e à necessidade da bengala) espero ainda viver muito”, seguido de um sorriso cativante, meio que a garantir que ainda vai continuar brincando o eterno joguinho das palavras e ideias.
Como da mesa fazia parte Benjamin Moser, o norte-americano que escreveu a biografia de Clarice Lispector, foi inevitável ela relembrar a escriba prematuramente falecida aos 57 anos, e dividir com a platéia detalhes dos encontros com a amiga “perto demais do coração selvagem” que ocorreram em viagens de eventos literários.
Lembrou carinhosamente das falhas de dicção da colega ucraniana/ brasileira, o que ela chama de “língua presa”, e se divertiu em revelar as recomendações que Clarice sempre lhe fazia. Por exemplo, “Lygia, tirrre esses vincos da testa e vista brrranco parrra conseguirrr leveza”. Daí a camisa branca por baixo do blaser, singela homenagem à amiga.
E assim, num descortinar informal, Lygia foi deleitando o público com memórias da sua juventude de moça humilde que publicou, aos 15 anos, o primeiro livro de contos patrocinado pelo pai. Falou do emprego no Departamento Agrícola do Estado de São Paulo que rendia o salário de 400 mil réis dividido com a mãe recentemente separada do pai. O restante do tempo e do dinheiro eram destinados para os dois cursos que fazia simultaneamente: Educação Física e Direito.
Contou que Clarice, sempre irreverente, nunca se conformou com sua vida de mulher certinha, que nunca teve um amante, por exemplo. “Não houve tempo, fiquei viúva cedo e logo me casei de novo”, desculpava-se. Lygia com a amiga. Clarice também não compreendia o interesse na atividade física. “Foi um esforço enorme fazer os dois cursos paralelamente, mas eu acredito mesmo que toda moça deve exercitar o corpo com a natação, a ginástica e os jogos”.
Lygia encantava-se com os esportes de competição. E foi bem nessa hora, ao se lembrar das orientações do mestre nas aulas de esgrima que ela mostrou a sua porção poeta. Nos treinos, o professor dizia “Menina, proteja-se, seu coração está exposto”. Ao que ela completou, “não adiantou nada o que ele me ensinou, pois meu coração continua exposto, até hoje”.
Felizmente para nós, seus leitores. E mais ainda para todos os privilegiados que tiveram a oportunidade de vê-la de perto na sua elegância bem humorada. Um mar vivo de corações tão expostos como o daquela dama na tarde de um domingo prá lá de especial.
(*) Foto de Fernanda Grigolin para a Balada Literária