sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Mottainai!


2011 acaba amanhã e, baseados em antigas previsões, muitos dizem que tudo acabará em 2012. Será? Essa possibilidade tem tirado o sono de tanta gente, mas eu prefiro não perder tempo com esse tipo de coisa. Mas não posso evitar de ficar meio melancólica, sorumbática neste periodo, mesmo com toda a agitação das Festas.

Semana passada eu viajei, peguei a revista 29 horas (disponível nos principais aeroportos), guardei-a na mala, e só ontem consegui abri-la. E logo me deparei com matéria da minha amiga Chantal Brissac trazendo depoimentos de Lia Diskin, argentina que vive no Brasil desde 1971, quando ajudou a formar a Associação Palas Athena (que agencia e incuba projetos sociais e educacionais) e que está por trás de algumas das mais concretas e persistentes iniciativas pela paz e pela convivência entre as pessoas.

Nessa matéria, Lia reflete sobre a questão do consumo e como ele afeta o meio ambiente. Ela cita o grande pensador Confúcio que 2.500 anos atrás já dizia: "Nada é bastante para quem considera pouco o que é suficiente". Gandhi, por sua vez, sempre repetia: " Todo aquele que tem coisas de que não precisa é um ladrão", referindo-se ao fato de que, quando você guarda algo que não usa, automaticamente está impedindo que outra pessoa o utilize. Lia garante que, se Gandhi vivesse hoje, sua maior luta seria parar a onda desenfreada de consumo.

Ainda tem muita gente morrendo de fome no planeta, mas continuamos desperdiçando alimentos. Estamos caminhando para uma falta de água universal, e ainda assim nossos banhos são longos e as torneiras ficam abertas mais tempo do que deveriam. Produzimos lixo em quantidades absurdas e inconsequentes, seguimos trocando celulares e eletronicos sem real necessidade. É que talvez a nossa preocupação ainda não tenha se transformado em indignação.

Mas felizmente, embora de maneira lenta, as coisas estão mudando e muitos vêm trocando o individualismo pelo coletivo. E já tem jovens trocando carro pela bicicleta, viagens caras por temporadas de trabalho e troca de experiências em aldeias indígenas ou africanas ou ajudando a transformar seus bairros em ecobairros. Na Europa há até prédios adotando esquemas de eletrodomésticos e carros compartilhados.

Então, copio Lia Diskin e ecoo aqui a palavra japonesa
"Mottainai!" que significa "que desperdício!". Que ela seja a nossa guia e esteja na ponta da lingua para ser dividida e multiplicada. Só assim poderemos viver melhor, e sem culpas, o tempo que nos resta. Feliz 2012 e sempre.

sábado, 10 de dezembro de 2011

Mil tsurus



Minha querida amiga, a Tereza Yamashita, está participando de uma exposição com a mostra com o nome sugestivo e meigo que vocês podem ver aqui encima. Nela, ela nos brinda com mil tsurus , aquele origami mais famoso no Japão e que representa essa ave tão sagrada para eles.

Além de autora de livros infantojuvenis fantásticos, Tereza é designer gráfica e origamista de mão cheia. Não deixe de passar lá para conferir a delicadeza de seu trabalho.

domingo, 4 de dezembro de 2011

Bafinho ou bafão?



Roberto jamais soube porque o nosso caso não foi para frente. Trabalhávamos juntos, tinhamos o incentivo de todos os colegas, valores e histórias parecidos. Havia atração e éramos livres, por que não tentar? Certo dia, resolvemos conferir toda aquela cisma amorosa. E ele bem que tentou, coitado. Foi carinhoso e eficiente nas suas manobras, mas simplesmente não conseguiu me empolgar. Quem diz que mulher não broxa?



Até hoje lamento essa impossibilidade, mas não dava para ignorar um terceiro elemento que se interpôs entre nós: o cheiro que desprendia de seu corpo e de sua boca, intolerável para mim, e que se acentuava cada vez mais, conforme ele transpirava no esforço de me agradar. Cheguei a ter náuseas. Foi constrangedor.


Curioso é que, tempos depois, Roberto foi alvo da paixão de uma colega linda, poderosa e casada, com quem manteve um tórrido romance que durou anos. Para ela, decerto o cheiro do meu amigo era atraente. Ou seja, o que repulsa um, pode ser o mesmo que atrai outro.


Parecia que esse espisódio frustrante estava sepultado dentro de mim para sempre, até que, dia destes, ao ler a última revista piauí, o artigo "Delação anônima" me remeteu a ele direto, e sem escalas. Fala de uma recém inaugurada Associação Brasileira de Halitose - ABHA, voltada para atender pessoas que querem dizer a alguém que ele tem bafo, mas sentem-se constrangidas de fazê-lo pessoalmente. Assim, a "vítima" recebe uma carta-padrão em sua residência ou trabalho, cujo texto é algo como "Um amigo próximo a você solicitou que entrássemos em contato para alguns esclarecimentos". Cheio de dedos, o texto discorre sobre as causas e o diagnóstico do mau hálito e oferece ajuda para informar, esclarecer ou mesmo indicar um profissional qualificado, garantindo o anonimato de quem teve a iniciativa.


Refletindo aqui com meus botões, busco na memória aquela velha história com o Roberto e as diferentes reações que ele provocava, e isso me leva à seguinte pergunta: fora os casos confirmadamente patológicos, você não acha que muitas injustiças poderão ser cometidas a partir desse novo serviço de delação anônima? Até porque cheiro e olfato são definitivamente coisas muito pessoais. Mas, na dúvida, antes se jogar fisicamente numa conquista, não custa nada, antes, conferir o bafo.

Na dúvida, já avisei meus amigos, meu amor e os parentes: se um dia parecer que eu comi um rato podre, por favor, me chama num canto e me diga isso baixa, discreta e amorosamente... não envolva mais ninguém nesse vexame.

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Migalhas






ali se vê
a gata no pulo
Alice vem
pisando no licito
sorrateira
mas Nice quer
e querer é
falta de escrúpulo
ausência de medo
um contentamento
poeira de afeto


(*) Arte de Tulipa Ruiz, a cantora que vem bombando em todo o Brasil, e que se expressa também com as cores e as formas.

terça-feira, 30 de agosto de 2011

Rosários de Laura




  • Aqui se faz, aqui se paga, o preço é que varia.


  • Amigos, amigos, negócios à parte de todos.


  • A palavra é de prata, o silêncio de ouro. A escolha depende da cotação.


  • Esperta, a traine encurtou caminho ao abraçar o mundo com as pernas.


  • As aparências enganam se a etiqueta não estiver bem à mostra.


  • A mentira tem perna curta, e a verdade, preguiça.


  • Águas passadas não movem moinho, ovos caídos não voltam ao ninho.


  • Águas passadas não movem moinho, nem trilhas dos outros definem o meu caminho.


  • Lema dos exibidos: antes um belo especime do lado do que mal acompanhado.


  • Após a tempestade vem a bonança. Mas cadê a poupança?


(*) "Não negociável", trabalho de Robert Rauschemberg (1928-2008), o papa do pop norte-americano.

quinta-feira, 28 de julho de 2011

Mutilação





Ando sensível, mais parecendo um ouriço arrepiado, e tudo me faz refletir. Dia destes, conversando com amigos, soube o que um marido, na sua extrema simplicidade, disse para a mulher, recém-diagonosticada com câncer, e que teria que passar por uma mastectomia, o que para ele era uma forma de consolo: Não fica triste, não. Prá que eu preciso de dois peitos se eu tenho uma boca só?


Alguns o julgaram grosseiro. Já eu procurei ver o quanto tinha de compaixão naquelas palavras singelas, uma espécie de promessa de cumplicidade, acolhimento e companheirismo frente a uma situação que abala qualquer mulher com uma fúria descomunal.


Esse caso me fez lembrar o velho mito das amazonas, guerreiras da antiguidade que, segundo a lenda, tiravam o seio direito para melhor manejar o arco e a flexa, e assim defenderem os seus domínios. Consideradas Deusas da Guerra, as amazonas odiavam os homens (que insistentemente tentavam usurpar seus bens e seu território) e viviam em comunidades só de mulheres na Capadocia (região rochosa que hoje pertence à Turquia). Se elas existiram de fato, se é mito ou lenda, não se pode afirmar. Mas há um pé de verdade nisso, porque etmologicamente falando, a palavra amazonas vem de "a-mazós", ou seja, "sem-seios".


Essa digressão me leva à seguinte questão: em que espécie de amazonas nós, mulheres, nos transformamos, já que - com ou sem peitos - vimos sendo levadas a nos defender com tudo o que podemos contra todo o tipo de ameaça? E, nesse processo de defesa, quanto da nossa feminilidade vamos perdendo pelo caminho?

segunda-feira, 27 de junho de 2011

O corpo, Momento VIII




Fazer o simples é o mais difícil. O grande Arnaldo Antunes nos dá uma aula disso nesta faixa criada para um espetáculo de dança do Grupo Corpo em 2.000, onde faz um mergulho poético sobre o corpo.


O corpo existe e pode ser pego
É suficientemente opaco para que se possa vê-lo
Se ficar olhando anos, você pode ver crescer o cabelo
O corpo existe porque foi feito
Por isso tem um buraco no meio
O corpo existe, visto que exala cheiro
E em cada extremidade existe um dedo
O corpo se cortado espirra um liquido vermelho
O corpo tem alguém como recheio.



Se quiser ver e ouvir, clica aqui: http://youtu.be/fWoY1xyS1zk


(*) "Le Bain de Pied" by Sarah Moon, 1998

terça-feira, 7 de junho de 2011

Alugo-me


Gosto de acordar tranquila, sem sobressaltos, e ouvindo boa MPB. Mas assim que pulo da cama, ligo o rádio na Band FM para me atualizar com aquela voz macia do Ricardo Boechat falando comigo e comentando as principais noticias do dia.
Um dos colunistas do programa é o José Simão que dá um toque de humor ao noticiário, ideal para relaxar o espírito e começar o dia com o ótimo astral. Mas ontem ele trouxe um fato realmente bizarro, um anúncio classificado que dizia assim:






Alugo-me



Sou um rapaz bonito, gentil, inteligente, elegante, e alugo-me para o Dia dos Namoramos. Dou beijo na boca, digo que amo e até poso para foto. As interessadas podem ligar para ...



Os locutores brincaram sobre o tal anúncio, eu mesma ri dessa nova estratégia de marketing pessoal, e o assunto não me saiu da cabeça. Quantas mulheres não se despesperam todo dia 12 de junho por não terem um namorado? Muitas até saem à caça, dispostas a encontrar uma "vítima" só para não passarem aquela noite sozinhas. E conforme a data vai se aproximando, descem os níveis de exigência até que vale qualquer um para chamar de seu, nem que seja por alguns dias (ou até algumas horas apenas).



Ano após ano os motéis lotam ao longo desse dia 12 em todos os horários: logo cedinho e na hora do almoço para os (as) casados (as) e seus encontros secretos, e a partir do pôr-do-sol os carros começam a se alinhar na porta com todo o tipo de casal: namoradinhos, namoradões, casais casados, pares de meninas, pares de meninos. O tempo de permanência comprime-se, no máximo três horas, porque a fila tem que andar e aí nada de tempo para o secador ou despedidas mais caprichadas.



A espera por lugares nos restaurantes e bares assim como na porta dos motéis é longa, os preços superfaturados, o trânsito infernal, a busca por vaga para estacionar desesperadora, mas vale a pena, inclusive trocar presentes, fazer juras, desfrutar de intimidades e confidências, nem que passados uns dias depois aquilo tudo se reduza a algumas boas lembranças... e uma foto.



Há muito que os homens já perceberam essa angústia aflitiva que acomete a maioria das mulheres (de todas as idades) que estão soltas na pista por conta do tal do Dia dos Namorados, e aproveitam-se disso para garantir-se de também não ficarem solitários nessa data.



Mas esse rapaz do anúncio foi além e, com sua atitude pró-ativa, ele vai ter condições de escolher, e agendar não apenas um, mas vários encontros ao longo desse dia. Pode até mesmo fazer uma espécie de leilão, do tipo “quem dá mais?” Haja saúde! E talvez nem precise transar, não é mesmo? Quem sabe para algumas baste mesmo apenas o tal beijo na boca e a foto com o gato para postar no Facebook.


Ele certamente vai ganhar muita grana, e no ano que vem muitos vão copiar sua estratégia simplesmente porque, por mais que os tempos mudem, e cada vez mais pessoas questionem a validade de um dia feito para o comércio faturar, todo mundo quer o calor de um toque humano, mesmo que de mentirinha e precise ser pago. A novidade agora é apenas o gênero do freguês.


(*) Aquarela "Sereno", de Maíra das Neves da menina dormindo sozinha ao lado de seu violoncelo numa floresta amedrontadora tem tudo a ver com o tema. www.mairadasneves.art.br

quinta-feira, 19 de maio de 2011

A voz de uma professorinha



Ontem Amanda Gurgel, uma professorinha do Rio Grande do Norte deu um tapa na cara dos politicos e dos dirigentes da educação em nosso país e tornou-se símbolo de uma luta. Ela é a imagem da esperança, porque só se tivermos mais jovens revoltados é que o ensino voltará a ter dignidade.


Trago para vocês este video que foi primeiro postado nos blogues dos escritores Braulio Tavares e Claudio Brites e que, certamente, será repercutido na blogosfera e nas mentes de todos os brasileiros. Chega de passividade. Vamos exigir que façam algo pela educação em nosso país já. Não dá para adiar mais isso.



segunda-feira, 9 de maio de 2011

Muda




Queria saber dizer tanto com tão pouco, como o Augusto dos Anjos neste poema de 1984, feito bem no auge da poesia concreta.


Tive esse poema colado por 10 anos num painel no meu quarto, meus filhos até o conhecem de cor. Hoje ele não está mais na parede, mas permanece aderido em mim com toda a sua perplexidade.

quinta-feira, 28 de abril de 2011

Conto de fadas




Uma plebéia, nascida num reino não muito distante, vai se casar com o príncipe, e o mundo todo se sente convidado a sonhar um pouco. Uma brecha de encantamento, uma licença para a fantasia. Bem dizia o escritor francês Joseph Joubert (1754-1824):



"A esperança é um empréstimo que se pede à felicidade."



Todos sabem que, mesmo com beijos, o principe se revelará um sapo, que a realeza é uma mentira engalanada e que o povo jamais terá direito aos brioches. Mas não custa nada sonhar que um lobo bem mau e gostoso acorde essa garotinha.



(*) Óleo "Menina no espelho", de Norman Rockwell.

segunda-feira, 11 de abril de 2011

Perplexidade


Eu queria saber juntar letras
para formar palavras
Juntar palavras e compor frases
e contar histórias
Histórias para falar da vida
mesmo que do ponto de vista
do meu olho estrábico
torto, perdido, embaçado

Depois eu criaria narradores
que vissem o mundo
de outros ângulos,
outro olhar mais nobre
ou mais pérfido que o meu

Só assim talvez eu
pudesse traduzir em letras
o sentimento destes dias
de tiros e sangue
em escolas de crianças


* Foto do Sanatório Vicentina Aranha, feito pelo meu amigo Alvaro Xavier, com muita sensibilidade: http://www.alvaroxavier.blogspot.com/
** Texto inspirado numa frase do falecido artista plástico Leonilson, cuja obra incrível é tema de exposição no Itau Cultural até o final de maio.

sexta-feira, 25 de março de 2011

O gato, o urso e o rato



Preciso confessar: eu ando apaixonada. Desde que o Machado entrou na minha vida, tudo se modificou. Para mim ele significou um resgate no tempo e de novo eu voltar a ser responsável por um bebê: remédios, alimentação, vacinas, carinho, carências, estimulação, brincadeiras, etc. O que compensa a frustração de, às vezes, eu ser preterida pelo urso de cimento ou o ratinho de pelúcia.


Machado é um gatinho vira-lata de cerca de 4 meses que peguei numa Ong que funciona dentro do Parque da Água Branca, em São Paulo, lugar onde gente sem sentimento joga animais como se fossem lixo. Então um grupo de senhoras se organizou, e conseguiu da Prefeitura, que administra o parque, um pequeno espaço para construir o gatil, uma área pequena e cercada com grade de ferro. E lá, com ajuda financeira de uns poucos, elas dão plantões de até 6 horas/dia para alimentar e cuidar desses bichos descartados até que sejam adotados (já castrados e vermifugados) sem cobrança de taxa alguma. Contam apenas com a colaboração de alguns veterinários e de jovens que cuidam da manutenção e atualização do site http://www.balaiodegatos.net/index.htm


Todinho preto e com olhos amarelo esverdeados, Machadinho logo ganhou esse nome em alusão ao grande escritor Machado de Assis também negro de olhos claros. E é o responsável pela festa que virou a minha vida. Ele está aqui em casa há 45 dias. Desde então nunca mais pude deixar gavetas e portas abertas, alimentos sobre a mesa, nem nunca mais consegui ficar na cama à toa pela manhã, porque sei que tem uma coisinha linda, atrevida, desafiadora, engraçada, meiga e toda cheia de gás só esperando eu levantar para começar um novo dia bem agitado.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

O último portal fazendo festa



Sábado que vem tem festa, aqui em São Paulo, pelo lançamento do Portal Fahrenheit, o último da série. Tenho a honra de fazer parte desse time de autores de pira no gênero ficção científica.

Aqui o convite para o evento que reunirá autores de todas as revistas da série. Apareça. Vai ser um prazer. Clique sobre a imagem para que ela cresça.

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

As várias faces de Laura (e alguns catados)



Tive a honra de ser entrevistada no Escritablogue, onde pude falar um pouco de mim e do meu trabalho. A edição mostra um apanhado dos meus textos em prosa & verso.

Quem quiser conhecer este blogue incrível basta clicar aqui:

http://escritablog.blogspot.com/search/label/laura%20fuentes

É a volta da Revista Escrita, editada pelo escritor, jornalista e professor Wladyr Nader, que abalou o mercado editorial nos anos 80 e 90 com a editora de mesmo nome, e que, agora em formato digital, promete barbarizar.



(*) A arte é do francês Jan Fabré

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Kafka é pouco


— Lamento, seu documento não saiu porque a senhora está desaparecida.
— Desaparecida? Como assim?
— Aqui consta que alguém comunicou à policia o seu desaparecimento. Sendo assim, não podemos fornecer um novo RG.
— (Atônita e respirando fundo) Olha meu rapaz, eu sou eu, juro, estou aqui sã e forte, vim com minhas próprias pernas até este Poupatempo que dizem que, de tão eficiente parece coisa de primeiro mundo, pago as minhas contas, vivo nesta cidade desde que nasci e, que eu saiba, embora muitas vezes eu tenha desejado ardentemente, jamais desapareci assim, sem mais nem menos.
— Sei disso, estou vendo. Mas não posso fazer nada. A senhora deve se dirigir ao DHPP com o documento original e ver o que está acontecendo, resolve tudo e então volta aqui — disse o rapaz no estilo funcionário público entediado, crachá ostensivo no peito.
— Isso é tão surreal que me soa como um conto do Kafka...
— Hã?
— Deixa pra lá. Só me dê o endereço direitinho e me ensine como chegar lá, por favor, moço.

Foi aí que lembrei que, justamente porque ia pegar o novo RG, eu não tinha levado nenhum outro documento original na bolsa. Assim, precisei voltar para casa. No caminho, ía tentando controlar o pânico de precisar ir para o bairro da Luz. Quem mora em São Paulo entende o drama que isso representa devido ao entorno repleto de prostituição e de gente consumindo crack. Ah, detalhe, chegando no meu prédio, os caras da manutenção estavam consertando o elevador. Não acreditei: tive que subir (e descer) os nove andares na raça. E por dentro blasfemava, tem dia que já nasce torto.


Pesquisando na internet, descobri o ônibus que me deixaria bem na esquina do prédio da Polícia Federal e para lá fui. Mas, quando parei do outro lado da rua, não pude evitar de sentir um calafrio ao observar aquele prédio grande, antigo e imponente. Gente da minha geração, depois de todos aqueles anos duros, tem horror a tudo que se relaciona com polícia! Mas fazer o que? Puxei o ar, estufei o peito, me enchi de atitude e entrei. No balcão de informações, um senhor me informou que o Setor de Desaparecidos ficava no sétimo andar. O arrepiou piorou quando desci no imenso hall do andar indicado e uma placa na parede explicava o significa DHPP : Divisão de Proteção à Pessoa. Proteção?


Não sabia para que lado ir naquele emaranhado de corredores muito largos e salas imensas e vazias, só uma funcionária lixando as unhas aqui, outra papeando com a comadre pelo telefone ali (conta e salário pagos pos nós, contribuintes, claro). Enquanto perambulava perdida por ali, ía pensando quanto desperdicio de espaço. Com a carência educacional nesta cidade, melhor seria instalar uma escola alia. Comecei a me perguntar: cadê as dezenas de delegados que a gente vê toda hora na TV se gabando de seus feitos? Estariam todos agora no Datena? Se eles são assim tão eficientes e tão pouca gente precisa se proteção para que tanto espaço? Até que finalmente alguém me deu atenção e disse: "Ah, os Desaparecidos é ali, a segunda porta dobrando à esquerda".


A tal porta abria para um amplo conjunto de salas sem viva alma. Tudo vazio, exceto uns dois ou três paletós pendurados em algumas cadeiras. Clássico. Concentrando o olhar, vi que havia um rapaz lá no fundo numa sala às escuras. Sinistro. Só eu e ele por ali. Bati numa mesa fazendo barulho, acenei, ele respondeu ao aceno e, cinco minutos depois, enfim se dignou a sair do escurinho (ele também bem escurinho, cabelo rasta) e veio me atender. Contei a história ao cavaleiro solitário que me chamou a sentar frente a sua mesa e logo foi digitando os meus números no computador.


— Humm, vejo aqui que tem um B.O de 1998... o que a senhora estava fazendo em 98? — indagou, sério e com um certo tom de mistério.
— 98? Sei lá, já nem me lembro — respondi
— É, mas alguém declarou seu desaparecimento nessa data. Terá sido durante alguma viagem?
Segurei para não dar risada. Ele parecia aquelas videntes que ficam olhando para a bola de cristal, vêem coisas, vão disparando frases e pouco olham nos olhos da gente.
— Ora, eu viajo constantemente, o trabalho me obriga. Vez por outra também saio em férias Mas, que eu saiba, ninguém jamais achou que eu tivesse sumido de vez.... Só se foi algum ex-namorado saudoso — aventei, sorrindo. Imagina só, eu fazendo gracinhas dentro da Polícia Federal. Agora, susto passado, nem eu mesmo acredito.
— Vai ver ele tava com medo que a senhora não voltasse — brincou.
Para encurtar a história, Alipio (esse o seu nome) descobriu que existe um homem em São Paulo, um tal de César Tertuliano não sei do que (eu achei o nome do caramba), que tem um número do RG idêntico ao meu, com a exceção de um “dígito X”. E foi o Tertuliano quem desapareceu naquela data, não eu. O sistema deve ter se confundido, sei lá.


Naquele momento, enquanto o rapaz lutava para tirar a tal informação do meu prontuário, divaguei um pouco ao observar como ele, um simples funcionário público do baixo escalão tinha acesso e o poder de modificar as coisas, colocar ou retirar observações de qualquer ficha documental, sem qualquer protocolo, documento ou testemunha que atestasse essa interferência, e como deve ser assim que a malandragem prolifera. Ah, o baixo clero (vide o episódio recente do vazamento do imposto de renda de alguns tucanos). Já delirando, pensei, poxa, não seria bacana também se Receita Federal também me desse por desaparecida desde 98? Quanto imposto eu poderia ter economizado esse tempo todo?


Depois de alguns minutos totalmente em silêncio, apenas teclando, Alipio disse:
— Pronto, baixei a informação do sistema. Mas ainda consta aqui que em 2001 seu RG foi extraviado...
— Ah, sim, foi quando me furtaram a carteira, mas na época fiz B.O e tirei um novo — respondi pensando caramba, esses caras sabem de tudo — Mas isso pode atrapalhar, moço?
— Acredito que não. Pode voltar ao Poupatempo que eles lhe entregarão o documento na hora.
— Poxa, muito obrigado — agradeci com um aperto sincero de mão.
—Agora namorado nenhum mais pode dizer que não a encontrou — respondeu Alipio, mostrando que tinha aderido à brincadeira.


Saí da Luz aliviada, me enfiei nas entranhas do metrô, ressurgi na superfície da estação Sé ensolarada, certa de que eu não estava mais na lista dos desaparecidos desta nação. Retornei ao Poupatempo e, em 40 minutos, saía de lá com meu RG fresquinho, foto recente revelando novas rugas que, para mim, são a comprovação que o tempo passa, mas Macunaíma continua rei por aqui.


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PS: Ah, nada a ver, mas só pra constar, fui pesquisar e descobri que Tertuliano nasceu de família pagã, e tornou-se um líder cristão rebelado que criou sua própria religião por volta do ano 200 d.C. E provocou muita polêmica por desmentir algumas crenças, entre elas a virgindade de Maria. É mole?