Foram horas no banho, tentando mandar pelo ralo tudo o que a afligia. Na frente do espelho, não havia maquiagem suficiente que trouxesse o viço, cor ou textura de outros tempos. Nem mesmo os olhos verdes, antes lagos serenos tão elogiados agora se destacavam mais, escondidos pelas pálpebras pesadas de álcool e noites de mágoa virando na cama. Para se garantir, ela não vacilou. Pegou o velho jeans surrado e colante, aquela blusinha generosa e chamativa, e para arrematar a sandália mais matadora, saltos finos e altíssimos.
Desde que o Agenor a abandonou há dois anos para viver com uma zinha qualquer, a funcionária pública dedicada, a dona de casa exemplar que vivia para agradar o marido e cuidar da casa e da família precisou rever sua vida, valores e medidas. Descrente de afetos sinceros, desde então mudou o guarda roupa, a cor do cabelo e a atitude, e se contenta com o fugaz até que surja alguém que a veja de verdade.
Sai tropeçando no salto e na auto estima até o bar mais próximo com a esperança de sempre. Sente um calafrio quando vê, no bar em frente, seu ex-marido bebendo com aquele seu grupo de amigos arruaceiros. Mas não dá bola para isso. Algo lhe diz que esta noite pode ser bem diferente
(*) Você pode ver um outro lado dessa história no conto "Viúva", de Petê Rissatti no blog Vermelho Carne. Clique aqui
A escultura acima, “Abandom” é de Camille Claudel, que sabia tudo sobre abandono