sábado, 19 de setembro de 2009

Um gostar distraído


Tarcísio gostava de Dinah. Não era por causa do seu jeito indireto, quase perpendicular de olhar. Não era pelos gestos contidos, pensados. Nem pelo jeito casual de se vestir. Mas talvez pelo que de sedutor ela escondia com a timidez, a cabeça baixa, a fala num fio, quase sussurrada, parecendo sempre meio assustada.


Gosto não se discute, e Tarcísio nem tentou descobrir a razão dessa atração absurda, nexo algum aparente. Foi-se apenas deixando levar pela garota de passos leves, que à sua maneira oscilante, ia-o conduzindo cada dia mais para dentro de seu mundo muito particular. E, como a maioria dos homens sofre de retardo emocional, Tarcísio não fugia à regra, por isso nem percebeu quando foi que aquele gostar cresceu a ponto de não conseguir mais nomear.


Já Dinah, ah a Dinah... por debaixo da aparência calma, do jeito meio sem jeito, essa sabia o que queria, e esse querer tinha um nome: Tarcísio. Sem os pendores próprios da beleza, ela tratou de cedo alimentar outros atributos bastante especiais, ainda que pouco valorizados: o ouvido, a compaixão, a paciência, a emoção sempre latente. Cercava-se de saberes e vivia rodeada de livros, por isso sempre tinha o que acrescentar ou forma de confortar a quem quer que precisasse ser escutado com atenção e carinho.


Quando conheceu Tarcísio, algo de muito estranho aconteceu. Era o homem de seu destino, mesmo que à primeira vista lhe parecesse um sonho absurdamente distante. E, como o Universo conspira a favor dos que desejam de forma tão arrebatada, ele foi se achegando e se envolvendo ainda que distraído. Dinah bem sabia que para ele era tudo apenas curiosidade. Por isso teve que aprender a desenvolver a calma, e não perder o controle com os esquecimentos, as traições e as dissimulações. Teve que aprender a fingir, e isso não era da sua natureza.


Enquanto isso, sem se aperceber, Tarcísio estava sendo enredado. Certo do domínio da situação e a porta de saída sempre aberta, ele abusava. Magoou tanto Dinah que, um dia, ela não aguentou mais e trancou as entradas. Bem que ele tentou se desculpar, prometeu até mudar. Descaso, para ela, era imperdoável. Era justo esse o seu limite.


Dizem que até hoje Tarcisio lamenta a perda daquela que nada lhe cobrou, muito lhe deu, a única que o fez feliz embora ele tenha custado a notar. Já Dinah, mesmo sofrendo a perda, seguiu o seu caminho.


E muitos não compreenderam quando, logo depois, ela começou a circular com Domingos, seu colega da faculdade. Tão tímido quanto ela, nada atraente, mas gentil e delicado, o rapaz foi seu abrigo e seu apoio naquelas horas difíceis. Ela até parecia mais bonita e segura de sí. Ficaram juntos por um tempo, fizeram planos. Até que o olhar enviesado de Dinah cruzou com o de Marcel, campeão de esporte, o gostosão da hora e só aberto a relacionamentos de superfície. E, de novo, ela caiu no conto do Homem de seu Destino. Tem gente que não aprende.


(*) " A menina no espelho", de Norman Rockwell, pintor e ilustrador norte-americano.

(**) Vai bem também ouvindo Maria Bethânia cantando "Grito de Alerta", de Gonzaguinha. Clique aqui.

6 comentários:

Laila Guilherme disse...

Delícia de crônica sobre amores e desamores. É o coração da gente que não aprende, mas vale a pena!

Claudia disse...

Amei, Laurinha. Amei!
Não poderia deixar de dar uma palavrinha sobre as entrelinhas. Seja aparente ou dissimulado, o controle que temos sobre nós mesmos e nossas situações vividas não passam de mera ilusão.
Um beijão, amiga.

Vladimir Golombek disse...

gostei, me lambra o cantar do vento da minha varanda quando não fica parado ou bravo e não consigo descobrir se vai trazer chuva ou sol

Tati Messias disse...

Obrigada Laura!
Seja bem vinda!
Toujours!

Andrea disse...

Jogo de xadrez... refletimos e nunca sabemos se mexemos a peça certa... até o xeque-mate... depois a memória se encarrega do esquecimento... e iniciamos outra partida...

Laura Fuentes disse...

And.Lua, você tem razão, com o esquecimento da dor perdemos o medo de nos jogar de novo. É justo isso que nos faz vivos.
Vladimir, curiosa a imagem você teve a partir deste texto. Poética mas angustiante.
Clau, você como sempre afiada na leitura psicológica da coisa.
Laila e Tati, obrigadão pela visita. Venham sempre, é um prazer ter leitores como vocês.