Mulher adora fazer compras. Não dá para negar. Tempos atrás eu morava perto de uma importante rua de comércio de São Paulo, e costumava circular bastante por ali. Certo dia, precisando pesquisar preços para um eletrodoméstico, tomei coragem e entrei nas Casas Bahia, mesmo sabendo que teria os ouvidos machucados por uma música infernal entremeada com as dicas das melhores ofertas da loja gritadas pelo locutor de plantão. Não deu outra, logo escutei a seguinte pérola numa voz empostada:
— Você fala tão bem, tem uma voz tão bonita, mas não pode cometer erros do tipo “pode estar adquirindo”, senão as pessoas logo vão te imitar e passarão a falar errado também.
Temi que ele ficasse chateado, envergonhado, ou ainda que me respondesse de forma agressiva. Mas que nada, ele ficou tão envaidecido com o elogio à sua voz que abriu um sorriso enorme, e ainda me agradeceu a dica dizendo:
— Gosto quando me corrigem, só assim posso me preparar melhor para o meu sonho que é trabalhar no rádio.
Estimulada, fiquei conversando alguns minutos com ele, mostrando alternativas gramaticais para aquela frase tão dolorosa aos ouvidos mais sensíveis. No curto tempo ele me contou que se chamava Rogério Carlos, porque a mãe criou os filhos para serem gente importante na vida. O irmão mais velho era Roberto Carlos, o segundo Erasmo Carlos. Nasceu e foi criado numa cidadezinha próxima a Belo Horizonte, daí pronunciar as palavras bem mastigadas e aquele tipo de “R” soprado, correto, empregado por atores, locutores e os mineiros daquela região. Contou também que largou emprego, casa e família para vir tentar a sorte em São Paulo apostando unicamente na dicção perfeita e no timbre natural muito grave. Para realizar o sonho, valia tudo, até morar em vaga para homens solteiros numa pensão da região da Luz, onde se sentia muito solitário.
Nunca mais o vi, e jamais esqueci desse rapaz e da sua tenacidade. Mas dia destes, no metrô me lembrei dele. E explico por quê. Gosto muito de observar as pessoas, seus traços e reações. Por isso, sempre que vou tomar o metrô, me coloco na plataforma de forma a poder observar o condutor vindo em minha direção, e depois que entro, avaliar se a voz que ecoa dentro dos vagões combina com sua figura. Uma bobagem, mas eu me divirto com isso, confesso. Já vi condutoras enormes e gordas com voz de garotinha, rapaz magro e atarracado com timbre poderoso, e até homenzarrões soando quase femininos. Raramente a voz combina com o tipo físico e isso para mim é uma gostosa brincadeira.
Mas, naquela tarde, eu estava distraída dobrando o guarda-chuva que pingava, e não prestei atenção no condutor. Logo depois, o alto-falante informava a próxima estação, seguido dos avisos de sempre. Dele vinha uma voz empostada, grave, com aquele “R” diferente dos paulistas, e tão familiar que me remeteu imediatamente ao Rogério Carlos.
Será que era ele? Teria RC se capacitado para prestar um concurso que pudesse deixá-lo mais perto do sonho? Quem sabe um dia especial trouxesse para ali alguém que reconhecesse o seu belo timbre e o levasse a falar com os fãs nas ondas de alguma rádio? Sei que é viagem, mas gosto de pensar que isso seria possível.
6 comentários:
Muito bom... gostaria de um dia escrever assim... continuar tentando..
Oi, Laura.
Saudades. Pena que não pudemos conhecer o café das suas amigas.
Obrigada pela visita.
Adorei o seu texto. Concordo com a Gaby Almeida.
Quando quiser, ficarei honrada em ilustrar um dos seus textos.
Abraços Dobrados
Tereza
Adorei Laura! Imagino que RC tenha gostado muito de conhecer mulher tão forte, e ficaria ainda mais feliz sendo homenageado por tão bonito e delicado texto! Parabéns!
Beijo da fã!
Maravilhosa sua crônica. Como eu, você é ligada em vozes! Por isso nem gosto de ver filmes com dublagens novas, as vozes nunca têm nada a ver.
Aliás, que tal era o RC, combinava com a voz? Você foi corajosa, e ele teve humildade o bastante...
Ótima sua brincadeirinha de combinar voz com locutor, no metrô. Nunca fiz isso, mas já observei vozes bem ruinzinhas...
Segundo me disseram RC entrou numa banda de death metal e está vendendo horrores na Estônia e no Japão.
Bjk
Quase me esqueço de comentar: ontem tentei fazer a brincadeira de combinar a cara do operador com a voz. Não deu certo, por dois motivos: não consegui as duas coisas, ora não via a cara do(a) sujeito(a), ora não lembrava de conferir a voz. Além do quê, por duas vezes usei o trem novo, que tem voz feminina padrão, gravada, e portanto perdeu a personalidade e espontaneidade... Snif!
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