sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Contagem progressiva



Desde criança, fico melancólica nos dezembros e nem sei explicar bem por que, mistura de sentimentos. A cidade enfeitada de luzes, vermelho, verde e dourado encanta, mas o ritmo que ela ganha me assusta. É uma agitação sem propósito, todos correndo rumo a um final e um recomeço carregado de esperança. E começa uma contagem regressiva angustiada. Ou será progressiva?


Amigos que não se vêem há tempos exigem um encontro “antes que o ano se acabe”. Almoços, jantares, drinques. Como zumbis seguindo uma sina, as pessoas saem às ruas aumentando o tráfego, brigando por vagas, por taxis, metrô e ônibus lotados, comércio apinhado, gente se digladiando por produtos ou a atenção dos vendedores exaustos. Listas enormes de presentes e lembrancinhas. É preciso suar em bicas para encontrar as melhores ofertas, não pode faltar para ninguém. Todo ano é igual: saldo estourado, corpo massacrado. Tantas confraternizações aumentam o estresse, mas o que importa é celebrar. Mas celebrar o que mesmo?


É adrenalina demais até que o ano recomece do um. E então, vem a delicia: todo janeiro é um mês morno, sossegado. Na medida para se procurar aqueles de quem se gosta de verdade, e marcar um encontro gostoso, com direito a muita troca, poder se ouvir, se escutar, todos mais disponíveis e doidos para estrear modelos e acessórios ganhos no Natal, contar as novidades.


Por isso que há algum tempo quando me convidam para encontrinhos de final de ano solto sempre um “a gente se vê em janeiro, quando tudo se acalmar”. E funciona, posso garantir. Viro um motivo a menos de estresse natalino, e mantenho os amigos que conquistei e faço questão de manter.


Há algum tempo aprendi a “limpar o terreno”. Me afasto dos tristes por opção, no eterno papel de vitimas (e que teimam em manter a nuvenzinha de estimação) para poder me dedicar e cuidar das amizades verdadeiras, como se fossem plantas delicadas. Uma simples questão de escolha. A frase abaixo diz tudo:

"Hay personas que transforman el sol en una simple mancha amarilla. Pero hay también quienes hacen de una simple mancha amarilla el proprio sol." (Pablo Picasso)

Desejo a todos os que acompanham este blogue, um 2011 muito amarelo!

domingo, 26 de setembro de 2010

Um número


Talvez por ela ser tão dadivosa, por gostar mesmo da coisa, ou quem sabe pela adoração desde sempre de conjugar os verbos variar e trepar, que nenhum dos amigos conseguiu entender quando Suely (com ypsilone como ela faz questão) começou a se envolver com Antenor, tido por todos como um viado enrustido.


Não que o fato dele ser estilista de vestidos de noiva necessariamente fosse um atestado de bichisse. Era mais pelos trejeitos, o jeito de pegar na xícara, o modo de caminhar de coxas unidas, o ouvido sempre aberto a ouvir confidências logo transformadas em fofocas. No mais ele era macho de carteirinha, se envolveu com muitas mulheres, tinha até sido casado, um par de filhos, até avô já era.


Uns dez anos mais velho que ela, Antenor era ainda elegante e fazia bonito quando acompanhava Suely nas festas, mesmo ela sendo uma trintona loiraçabelzebu cheia de curvas e peitos fartos estourando do decote infalível e matador. Um animal sexual. Antenor só não fazia bonito na cama. Para as amigas mais próximas, a maquiadora confidenciava que sexo ali era algo mais de intenção do que de ação propriamente dita. Tamanho pouco, dureza nada e, pior, carência total e absoluta de generosidade para com a próxima. Língua só para beijos apaixonados depois de alguns whiskies ou outros aditivos. Para piorar, as mãos de Antenor tão hábeis nos croquis, tecidos e bordados eram nada inteligentes no quesito “dar prazer”.


Às amigas mais intimas ela confidenciava: sem a pílula azul ele sequer conseguia o ponto mínimo para poder gozar, e isso só na punhetinha. Penetrar nela, nem pensar. Homem avariado aquele.Quando ele ia embora, restavam à loira as pregas machucadas, as costas doloridas e um cansaço provocado pelo esforço.


O que mais intrigava a todos é que, até então, a vida da moça tinha sido de farto curriculum. Em qualquer homem, ela sempre via possibilidade de um pino ereto: o garoto do farol, o PM do posto, o neguinho do pagode, o aposentado da fila do banco, o marido das vizinhas e até a sapata massagista, de tudo ela conferiu e se fartou. O que ligava essa mulher tão erótica e sexualmente resolvida a esse homem? todos se perguntavam. Mas com o Antenor, de alguma forma Suely se aquietou. Só podia ser amor, imaginavam.


Até que, certa noite, ela se viu num cenário igual ao daquele livro A Fogueira das Vaidades (que até rendeu filme, mas muito ruim). Foi quando depois de deixar Antenor no aeroporto (ele ia provar uma noiva em Mato Grosso, passagem e hospedagem por conta do pai da garota, fazendeiro podre de rico), voltando para casa, Suely se perdeu, entrou no viaduto errado, e acabou entrando numa região erma e sinistra.


Míope e atrapalhada no volante, Suely não achava saída e cada vez enfiava-se mais favela adentro, onde tudo ficava mais e mais escuro. Foi quando ela ouviu um barulho de moto. A princípio se encheu de medo. Mas, sem alternativa e tremendo muito, abriu o vidro do carro. Como é que eu saio daqui perguntou ao neguinho. Vendo aquele monumento farto, cabelos de chapinha ao vento, bocão desenhado a pincel e os peitos estourando na blusinha, ele bem que tentou manter a compostura e ensinou direito como voltar para a marginal.


Obrigada, disse ela enquanto tentava memorizar as coordenadas. Primeira à direita, terceira à esquerda. Mas bem quando esperava abrir o farol, de novo ela ouviu aquele som de motor. Olhou para o lado e lá estava a moto, emparelhada com sua perua.


Cara, você é tão linda que eu tive que voltar. Você me deixou com tesão. Olha só estado que eu tou. Foi quando Suely viu aquilo que há muito não via. Um imenso volume-homenagem-promessa-do-paraiso mal contido dentro do jeans, e um calor queimou seu ventre. Um braseiro. Jovem demais e franzino ainda, ele era meio feinho, é certo, mas os atributos eram excelentes, fora a evidente e inegável vontade política.


Suely tremeu na base, afinal nunca foi de fugir da raia. Vamo pra qualquer lugar, moça. Me leva pronde você quiser. Pelo amor de Deus. Deus. Ele falou Deus... Como ela queria provar daquilo de novo! Ela tentou cair fora, se convencer que aquilo era correr perigo demais. Argumentou que era tarde, que a mãe a esperava em casa e tal. Mas ele insistiu. Pediu até pra ela apalpar. Jurava que era um tesão que nunca sentira antes. Ela só pôde acreditar.


Com medo, mas dividida, Suely então resolveu ganhar segundos. Respirou fundo. Propôs trocarem telefones. Outro dia dariam jeito naquilo, ela jurou. Primeiro, pediu o telefone dele que anotou com o lápis de olho nas costas da mão. E então, devagarzinho, foi dizendo seu número. De sua boca foram saindo, um a um, todos os digitos, verdadeiros. Exceto o último.


Foi a noite em que Suely provocou um enfarto em seu vibrador, já tão usadinho. Estava mesmo na hora de aposentá-lo com todas as honras por serviços prestados. Mas primeiro precisava comprar outro strap-on, mais poderoso. Antes do Antenor voltar.

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Vem aí o "Mecanismos Precários"



E graças apoio de todos os amigos e mentores, chego ao meu terceiro livro. Trata-se da antologia de contos "Mecanismos Precários", organizada por Nelson de Oliveira e Claudio Brites para a editora Terracota, que será lançada no sábado 11 de setembro (em alusão à data, um lançamento "bombástico"), com direito a coquetel e show de jazz.

São textos de colegas da pós graduação Criação Literária da Unicsul em parceria com a editora Terracota e de alguns dos nossos mestres, escritores já consagrados. Vejam só que time! Um privilégio e uma honra estar ao lado deles. Espero contar com a presença de todos vocês.

(*) atenção, não é este próximo sábado, é no outro, dia 11 de setembro!

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

O corpo fala



Ninguém ignora que a poesia é uma solidão espantosa,
Uma maldição de nascença, uma doença da alma.
(Jean Cocteau)


Quando a alma entristece, o corpo adoece.
E quando a boca cala, o corpo fala.
O nariz escorre quando não se permite chorar.
A garganta fecha
quando não consegue falar das aflições
A ansiedade impede de respirar.
O estômago arde quando a raiva surge e não consegue sair
O diabetes invade quando a solidão dói
A culpa adoece os rins.
Doenças pélvicas surgem de relacionamentos corrosivos
O corpo engorda quando a insatisfação aperta
E perde peso quando acaba o interesse.
Sentimentos negativos trazem a dor de cabeça que deprime
A alergia é fruto da intolerância e do perfeccionismo.
As unhas quebram quando se perde a força
O peito aperta quando o orgulho escraviza
O coração infarta quando não há como lidar com a ingratidão.
A pressão sobe quando o medo aprisiona
As neuroses paralisam quando o “eu” tiraniza
A febre surge quando a imunidade é ameaçada.
O coração desiste quando viver não faz mais sentido
O que adoece não é a só dor, a ausência, a saudade
Mas também a eterna escolha do papel de vitima.
Em alguns casos, o mal pode estar no excesso de orgulho
Ou na necessidade de controle.
Tentar compreender o que de verdade nos aflige
é um passo para começar a lidar com os problemas,
antes de interiorizar as dores da alma.
“Na vida, cada um escolhe o que plantar,
mas deve ter consciência que é isso que irá colher”.

Li algo parecido na sala de espera de um espaço terapêutico, e este texto é uma espécie de reflexão a respeito.

(*) Imagem de 1981 do francês Jean Fabre

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Incredulidade


Hoje, quando um goleiro ídolo e de fama internacional mata uma garota por conta de uma pensão, eu só consigo me perguntar: prá que? poder gastar com outras coisas?

E mais do que nunca me vem a poesia de Chico César na canção De uns tempos prá cá


Coisas são só coisas/ servem só pra tropeçar /

têm seu brilho no começo/

mas se viro pelo avesso / são fardo pra carregar.

Enquanto isso, meu coração segue em luto por Elisas, Mércias e Isabelas, abatidas em sua fragilidade por aqueles em quem um dia confiaram.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

As mais péssimas cantadas - parte 2


Vocês curtiram. Então, posto aqui mais vinte cantadas esdrúxulas só para diversão. Mais adiante trarei uma listinha de respostas inteligentes. Quem souber de outras pode colaborar nesta lista das piores cantadas jamais ouvidas.


1) Ele: Oi! (se você não responder) Ele: Cuidado para não tropeçar no orgulho e cair nos meus braços, heim?

2) Não sou Casas Bahia, mas minha dedicação é total a você!

3) Não sou do Itaú, mas fui feito para você!

4) Não sou o que você pensa, mas tenho o que você gosta.

5) Ele: Você é colher? Você: Não, por que? Ele: Porque eu estou de dando sopa.

6) Você não trabalha na Fiat, mas é o meu Stilo.

7) Sou a favor da ecologia, mas adoro afogar o ganso.

8) Existem dois tipos de mulheres: as que me amam e as que não me conhecem. Muito prazer!

9) Ele: Hoje é seu aniversário? Você: Não, por que? Ele: Porque você está de parabéns.

10) Posso te dar um beijo? Se você não gostar, é só me devolver.

11) Ele: Posso ficar aqui, conversando com você? Você: Não,minha mãe me disse para não falar com estranhos. Ele: Não por isso, prazer 'fulano'. Pronto, agora eu posso...

12) Seu pai só pode trabalhar no Google, porque acabei de achar tudo que eu estava procurando.

13) Me diz o caminho do seu coração para eu pegar o ônibus na rodoviária.

14) Você se machucou? Pois parece um anjo que caiu do céu.

15) Já foi no veterinário hoje, gatinha?

16) Perdi meu número de telefone, me empresta o seu?

17) Já estou aqui, quais são seus outros dois desejos?

18) Procurei "deusa" no Aurélio e seu nome estava incluído.

19) Você acredita em amor à primeira vista ou devo passar por aqui mais uma vez?


20) Se você fosse de chocolate eu te mordia aos poucos.



(*) Só mesmo as caricaturas do Manfred Deix para ilustrar tanto absurdo.

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Ouvir do ídolo

De 7 a 10 de junho, das 19h30 às 21h, Vinícius de Moraes, Paulo Leminski, Clarice Lispector e Erico Verissimo serão relidos por Carlos Felipe Moisés, Ademir Assunção, Nelson de Oliveira e Jeanette Rozsas.
Local: Espaço Terracota, Av. Lins de Vasconcelos, 1886, Vila Mariana – São Paulo – SP
Tel.: 2645-0549

Valor: R$ 35, cada palestra, ou R$ 100 pelos quatro encontros.
Informações http://terracotaeditora.com.br/




segunda-feira, 3 de maio de 2010

As mais péssimas cantadas


Hoje acordei de bom humor. E, só para divertir, resolvi começar a postar aqui esta série hilariante bem típica dos brasileiros. Aos poucos irei colocando aqui outros piores exemplos. Afinal, se o povo continua a usar esse tipo de abordagem é porque ainda tem gente que cai....rs.
Se tiverem outras abordagens tão esdrúxulas como estas, por favor, colaborem. Me ajudem a compor esse guia mais mais das piores cantadas.


1.Sabe o que ficaria bem em você? Eu


2.Todas essas curvas e eu sem freio nenhum...


3. Queria ser seu suor, para correr por todo o seu corpo...

4. Sexo mata... quer morrer feliz?

5. Você acredita em amor à primeira vista ou devo entrar novamente?

6. Você é tão quente que chega a derreter o plástico da minha cueca.

7. Você está na minha lista de coisas para fazer esta noite, sabia?

8. Estou participando de uma campanha de doação de órgãos! Não quer doar seu coração para mim?

9. Você não usa calcinha, você usa porta-jóia.

10. Você não é pescoço mas mexeu com a minha cabeça!

11. Essa sua blusa ficaria ótima toda amassada no chão do meu quarto amanhã de manhã!

12. Se você fosse um sanduíche teu nome seria X-Princesa.


13. Não entendo muito de carro, mas o meu coração é Parati.


14. Ele: Cadê o papel? Você: Que papel? Ele: O que você estava embrulhada, meu bombonzinho.

15. Ele: Você comeu sucrilhos de manhã? Você: Não, por que? Ele: Porque você despertou o tigre que há em mim.


16. Posso não ser um astronauta, mas garanto que te levo às alturas!

17.
Ele: Qual o segredo? Você: De quê? Ele: De tanta beleza!

18. Cientistas dizem que o objetivo da raça humana é crescer e se reproduzir. Você já está bem grandinha, vamos completar nosso objetivo?


19. Seu pai só pode ser um agricultor, porque você é um chuchuzinho!


20. Ele: Não tenho dúvidas, seu pai é padeiro. Você: Por que? Ele: Por que você é um sonho.


(*) A ilustração "nada a ver" é um trabalho de Mandref Deix
denominada "a caricatura do absurdo". Tudo a ver com a série.


segunda-feira, 12 de abril de 2010

Rosários & pensamentos



Meu pensar é masculino. Se penso muito num homem, sempre ligo para outro. Não tenho medo de perder, porque não preciso ganhar. Nisso sou bem feminina.

segunda-feira, 22 de março de 2010

Repaginando


Eu não agüento mais
viver na incerteza
sentir tua frieza
a minha passividade
carinhos ocasionais

Não estou suportando
a lágrima na garganta
o teu jeito pilantra
coração espremido
beijo só vez em quando

Você quer cair fora
mas não acha jeito eu sei
então quem parte agora
sou eu, pode crer, sem drama
cada um no seu quadrado

Vou mais é me cuidar
um novo amor partilhar
alguém normal, com defeitos
mas sem amarguras no peito
mereço e vou encontrar

Então bye bye so long
e sem nenhum flash back.
só o que eu te peço é respeito
seja muito feliz
sem nenhum ressentimento
a gente se vê por aí

(*) Porta de renda em ferro, inspirada na obra de Robert Mapplethorpe

sexta-feira, 5 de março de 2010

Amor aos berros


Certas noticias me chamam tanto a atenção que recorto e guardo numa pasta que volta e meia reviro em busca de ideias para os escritos. É o caso de um recorte de jornal do ano passado, e que fala do Dia de apreciar a esposa instituído há 4 anos no Japão, porque lá os homens perceberam que há muito vinham dando pouca atenção às companheiras. Nessa data eles se juntam para gritar a plenos pulmões - e ao ar livre - o quanto gostam delas e o quanto apreciam tudo o que elas fazem pela casa e pelo relacionamento.

A noticia me perturbou por várias razões. Primeiro, por ver como é fácil darmos mais valor e tempo ao trabalho do que à vida pessoal. Isso é ainda mais frequente com os homens, uma vez em geral são as mulheres que tomam para si a responsabilidade dos cuidados com casa e filhos. E isso internacionalmente. No Japão esse apreço ao trabalho é ainda mais forte, uma vez que com o esforço de reconstrução do país no pós-guerra, os japoneses ganharam a reputação de colocar seus empregos no topo das prioridades. Coitadas delas.

Mas será que adianta os homens berrarem longe de casa o quanto elas são importantes? Não seria mais eficiente – e agradável – eles passarem a gastar algum tempo do dia conversando com elas, olhando-as nos olhos, elogiando-as, fazendo carinhos?

A falta de jeito dos japoneses demonstrarem afeto é tão admitida lá, que fundaram a associação Maridos Japoneses que Apreciam (em inglês Japans Adoring Husband’s) e que se dedica a difundir as seguintes regras de ouro para manter acesa a chama do casamento:


1) Olhe nos olhos quando falar com ela;
2) Chame-a pelo nome, e não por você ou “mãe”
3) Chegue do trabalho até as 20 horas no máximo
4) Agradeça regularmente por tudo o que ela fizer pela casa ou por você
5) Ajude nas tarefas de casa.

Estamos a milhares de quilômetros do Japão, não temos aqueles olhinhos puxados, nossa cultura e tradições são bastante diferentes, mas não seria bom se, como eles, todos nós – homens e mulheres, em nosso dia a dia, procurássemos encontrar tempo para um dengo e um papo com aquele (ou aquela) que conosco partilha a vida e os sonhos?

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Confeito



Penso em você quando chove
raios e trovões me assustam...
desde criança é assim.
Boba, imagino invasão
naves de um outro lugar
milhões de seres miúdos
invadindo o bairro, casa,
se esgueirando em nosso lar.

E quando as gotas açoitam
o vidro querendo entrar
gelo por dentro, absorta
certa que vou naufragar
cerro os olhos e as cortinas
e, por dentro, eu te chamo

Quando o céu todo se espreme
de nuvens, veste seu manto
sombrio, ruge e treme
mandando o vento gritar
tempestade, eu me recolho
pensando: vai demorar ...
Desta vez, a chuva pode
me levar, me desmanchar
como seu eu fosse um confeito
todinha feita de açúcar.

Sempre que isso acontece
tudo o que quero é você
pertinho me protegendo.
Você é meu bote, minha
arca, meu telhado, para-raio
ou a terra que absorve
toda a água no seu dentro.

Com você do lado sinto
calma, passa chuva, passa
o medo, passa tudo
passa boi, passa boiada...

Logo mais o céu se abre
de novo em branco e azul
mas o colinho serviu
pra me deixar com a certeza
de ser muito amada, mesmo
com esse defeito infantil,
talvez marca de nascença.

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

O homem voz


Mulher adora fazer compras. Não dá para negar. Tempos atrás eu morava perto de uma importante rua de comércio de São Paulo, e costumava circular bastante por ali. Certo dia, precisando pesquisar preços para um eletrodoméstico, tomei coragem e entrei nas Casas Bahia, mesmo sabendo que teria os ouvidos machucados por uma música infernal entremeada com as dicas das melhores ofertas da loja gritadas pelo locutor de plantão. Não deu outra, logo escutei a seguinte pérola numa voz empostada:

Você pode estar adquirindo qualquer peça da linha Brastemp...

Ouvir aquele gerúndio foi tão violento que, automaticamente procurei com os olhos o autor da proeza. E eis que ele estava ali, a uns 5 metros de mim. Era um rapaz atarracado, moreno e baixinho, com o cabelo ondulado melado de gel e puxado para cima formando um topete esquisito. Não resisti. Andei alguns passos, e assim que parou de falar, passei por trás e, gentilmente disse pertinho de seu ouvido:

— Você fala tão bem, tem uma voz tão bonita, mas não pode cometer erros do tipo “pode estar adquirindo”, senão as pessoas logo vão te imitar e passarão a falar errado também.

Temi que ele ficasse chateado, envergonhado, ou ainda que me respondesse de forma agressiva. Mas que nada, ele ficou tão envaidecido com o elogio à sua voz que abriu um sorriso enorme, e ainda me agradeceu a dica dizendo:

— Gosto quando me corrigem, só assim posso me preparar melhor para o meu sonho que é trabalhar no rádio.

Estimulada, fiquei conversando alguns minutos com ele, mostrando alternativas gramaticais para aquela frase tão dolorosa aos ouvidos mais sensíveis. No curto tempo ele me contou que se chamava Rogério Carlos, porque a mãe criou os filhos para serem gente importante na vida. O irmão mais velho era Roberto Carlos, o segundo Erasmo Carlos. Nasceu e foi criado numa cidadezinha próxima a Belo Horizonte, daí pronunciar as palavras bem mastigadas e aquele tipo de “R” soprado, correto, empregado por atores, locutores e os mineiros daquela região. Contou também que largou emprego, casa e família para vir tentar a sorte em São Paulo apostando unicamente na dicção perfeita e no timbre natural muito grave. Para realizar o sonho, valia tudo, até morar em vaga para homens solteiros numa pensão da região da Luz, onde se sentia muito solitário.

Nunca mais o vi, e jamais esqueci desse rapaz e da sua tenacidade. Mas dia destes, no metrô me lembrei dele. E explico por quê. Gosto muito de observar as pessoas, seus traços e reações. Por isso, sempre que vou tomar o metrô, me coloco na plataforma de forma a poder observar o condutor vindo em minha direção, e depois que entro, avaliar se a voz que ecoa dentro dos vagões combina com sua figura. Uma bobagem, mas eu me divirto com isso, confesso. Já vi condutoras enormes e gordas com voz de garotinha, rapaz magro e atarracado com timbre poderoso, e até homenzarrões soando quase femininos. Raramente a voz combina com o tipo físico e isso para mim é uma gostosa brincadeira.

Mas, naquela tarde, eu estava distraída dobrando o guarda-chuva que pingava, e não prestei atenção no condutor. Logo depois, o alto-falante informava a próxima estação, seguido dos avisos de sempre. Dele vinha uma voz empostada, grave, com aquele “R” diferente dos paulistas, e tão familiar que me remeteu imediatamente ao Rogério Carlos.

Será que era ele? Teria RC se capacitado para prestar um concurso que pudesse deixá-lo mais perto do sonho? Quem sabe um dia especial trouxesse para ali alguém que reconhecesse o seu belo timbre e o levasse a falar com os fãs nas ondas de alguma rádio? Sei que é viagem, mas gosto de pensar que isso seria possível.

terça-feira, 19 de janeiro de 2010